Aldo Ferrer e a densidade de ser
Aldo Ferrer e a densidade de ser
Por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Una amistad de mĂĄs de 30 años que nace a partir de la funciĂłn pĂșblica y la integraciĂłn regional y se fortalece desde la misma mirada ideolĂłgica y polĂtica. La lucha contra el liberalismo econĂłmico y por un nuevo desarrollismo llevarĂĄ a una constante labor de enseñanza y divulgaciĂłn de los principios fundamentales que les permitan a las naciones del Cono Sur vivir con sus propios recursos y alcanzar el desarrollo con inclusiĂłn.
Conheci Aldo Ferrer em 1983, quando ele era presidente do Banco de la Provincia de Buenos Aires e eu, presidente do Banco do Estado de SĂŁo Paulo, e nos reunimos para, com a participação de um saudoso amigo, Gustavo Petricioli, presidente da Nacional Financiera de MĂ©xico, criarmos a Latinequip, uma empresa que promoveria o comĂ©rcio de bens de capital atravĂ©s da integração produtiva dos trĂȘs paĂses. A ideia bĂĄsica era de um amigo de nĂłs trĂȘs, o notĂĄvel cientista polĂtico HĂ©lio Jaguaribe.
Fiquei imediatamente encantado com Aldo Ferrer. Um homem pĂșblico da melhor qualidade, um economista brilhante que compartilhava comigo a crença no desenvolvimento econĂŽmico a ser alcançado atravĂ©s das ideias do desenvolvimentismo clĂĄssico ou estruturalismo latino-americano. Nossas duas mulheres eram psicanalistas. TĂnhamos tudo em comum. Ficamos amigos.
Foi uma longa amizade, na qual eu acompanhei o seu caminho pela vida pĂșblica e a universalidade, e ele, o meu. Foram mais de 30 anos de troca de ideias e de experiĂȘncias, mas nĂŁo foram anos felizes para o desenvolvimento dos nossos dois paĂses. Quando nos encontramos pela primeira vez, a Argentina e o Brasil estavam mergulhados em uma grande crise da dĂvida externa, que aqui se transformou logo em alta inflação. No meio da crise, em 1987, me vi ministro da Fazenda do Brasil; meus interlocutores na Argentina eram Juan Sourrouille, Adolfo Canitrot e Roberto Frenkel. Com eles eu discutia os problemas da inflação e da dĂvida externa. Mas quando era preciso pensar o desenvolvimento de nossos paĂses como um todo e os problemas sociais e polĂticos que era necessĂĄrio enfrentar, a melhor conversa era sempre com Aldo. Ele tinha uma densidade toda particular.
Conversar sobre os problemas da nação e do desenvolvimento tornou-se fundamental quando, nos anos 1990, depois de dez anos de crise do modelo desenvolvimentista, nossos dois paĂses foram tomados pelo liberalismo econĂŽmico e a dependĂȘncia. EntĂŁo nĂŁo bastava que fizĂ©ssemos a crĂtica das reformas neoliberais, que nĂŁo atendiam aos interesses do povo, mas dos capitalistas rentistas e dos financistas tanto os de nossos paĂses quanto os dos paĂses do Norte. NĂŁo bastava que afirmĂĄssemos, com base na experiĂȘncia, que o liberalismo econĂŽmico levava sempre a dĂ©ficits em conta-corrente, endividamento externo e crise âeram sempre experiĂȘncias de populismo cambialâ. Era preciso tambĂ©m que fizĂ©ssemos nossa autocrĂtica. Que compreendĂȘssemos por que nosso desenvolvimentismo havia derivado muitas vezes para o populismo nĂŁo apenas cambial mas tambĂ©m fiscal. E era preciso construir um novo marco teĂłrico âo que vem sendo realizado pelos economistas associados ao novo desenvolvimentismoâ. Em artigo de novembro de 2010, logo apĂłs um grande nĂșmero de notĂĄveis economistas do desenvolvimento ter assinado as âDez teses sobre o novo desenvolvimentismoâ, afirmou Aldo: âEsta iniciativa convocĂł a un amplio grupo de economistas, de varias partes del mundo, que comparten un âenfoque keynesiano y una aproximaciĂłn estructuralista a la macroeconomĂa del desarrolloâ, para reflexionar sobre la governanza financiera y el nuevo desarrollismoâ.
CrĂtica Ă âpoupança externaâ
Nossos paĂses haviam sofrido crises financeiras seguidas de crises econĂŽmicas por se endividarem em moeda estrangeira. Mas ninguĂ©m punha em dĂșvida a âsabedoriaâ que nos vinha do Norte e que nos dizia que âĂ© natural que paĂses ricos em capital transfiram seus capitais para os paĂses pobres em capitalâ, que, sim, devĂamos incorrer em dĂ©ficits em conta-corrente e recorrer aos emprĂ©stimos e aos investimentos diretos das empresas multinacionais para financiĂĄ-los. Bastava que fĂŽssemos prudentes em relação aos dĂ©ficits e que estes fossem cobertos por investimentos diretos âestes, sempre âum presente dos cĂ©us para os paĂses em desenvolvimentoââ e estarĂamos no melhor dos mundos possĂveis.
Esta tese conflitava com a nossa experiĂȘncia. E nĂŁo apenas porque os dĂ©ficits em conta-corrente eram maiores do que os investimentos diretos, mas porque o paĂs acabava se endividando em moeda estrangeira âmoeda que o paĂs nĂŁo pode nem emitir nem depreciarâ e entrava em crises financeiras recorrentemente. TambĂ©m porque as empresas multinacionais investiam, mas o paĂs nĂŁo crescia mais do que crescia quando a poupança era sĂł interna. Nossa dura experiĂȘncia estava, portanto, em conflito com os conselhos que recebĂamos do Norte. E foi por isso que, em determinado momento, Aldo Ferrer, que acabara de publicar um livro bĂĄsico sobre a economia argentina (El Capitalismo Argentino), teve uma ideia inovadora e escreveu um livro pequeno mas fundamental, Vivir con lo Nuestro (2002). Ao invĂ©s de taxas de crescimento geralmente baixas e de crises financeiras cĂclicas que resultavam da polĂtica de crescimento com âpoupança externaâ (uma expressĂŁo esperta para tornar dĂ©ficits em conta-corrente uma boa coisa), Aldo disse nesse livro que devĂamos, simplesmente, viver com os nossos recursos. Buscar crescer com a poupança interna, nĂŁo com a poupança externa. E um pouco depois, escreveu outro livro na mesma direção, Densidad Nacional (2004). Este livro era novamente Aldo Ferrer por inteiro.
O que ele estava dizendo nĂŁo era, a rigor, absolutamente novo. Um dos fundadores do desenvolvimentismo clĂĄssico, Ragnar Nurkse, observando o que realmente acontecia, havia dito em Problems of Capital Formation in Underdeveloped Countries (1953), âo capital se faz em casaâ. Mas nem ele prĂłprio levou esta frase Ă sua consequĂȘncia lĂłgica â que o paĂs nĂŁo deveria incorrer normalmente em dĂ©ficit em conta-corrente, mesmo que este fosse financiado por investimentos diretos; provavelmente por duas razĂ”es: primeiro, porque parecia lĂłgico procurar somar a poupança externa Ă poupança interna; segundo, porque o Banco Mundial e mais amplamente os âeconomistas do desenvolvimentoâ do Norte nĂŁo paravam de nos recomendar o crescimento com poupança externa.
Aldo Ferrer foi uma nacionalista econĂŽmico, e, portanto, um desenvolvimentista para o qual estava claro que Ă© impossĂvel para um paĂs da periferia do capitalismo se desenvolver e se integrar na economia mundial da maneira subordinada, como propĂ”em os paĂses ricos, o Norte. Que, sem dĂșvida, o paĂs devia se integrar, mas competitivamente. Para ele nĂŁo havia nenhuma razĂŁo boa para que um paĂs como Argentina lograsse ser competitivo em certos setores, desde que sua taxa de cĂąmbio fosse competitiva, que nĂŁo fosse determinada pela rentabilidade das exportaçÔes de commodities, mas pela rentabilidade das empresas industriais competentes que o paĂs tem ou pode ter.
Foi aproximadamente na mesma ocasiĂŁo em que Aldo escrevia Vivir com lo Nuestro, em 2001, que eu publiquei o primeiro artigo do que, quinze anos mais tarde, viria a ser todo um sistema teĂłrico, jĂĄ com a participação de muitos economistas, o novo desenvolvimentismo. Este artigo denominou-se, "A fragilidade que nasce da dependĂȘncia da poupança externa" e nele eu começava a construir toda uma argumentação que explicava por que a polĂtica de crescimento com endividamento ou poupança externa nĂŁo contribui para o desenvolvimento econĂŽmico, mas o prejudica. Ou, em outras palavras, por que devemos evitar dĂ©ficits em conta-corrente, que implicam necessariamente endividamento em moeda estrangeira, e procurar crescer com nossos prĂłprios recursos.
O argumento Ă© simples. Primeiro, existe algo bem sabido: que o desenvolvimento econĂŽmico depende, fundamentalmente, da taxa de investimento. Este, naturalmente, incorporando progresso tĂ©cnico. Segundo, existe algo que poucos economistas se dĂŁo conta: que o investimento depende da taxa de cĂąmbio quando esta tende a ficar sobreapreciada no longo prazo. Eles nĂŁo se dĂŁo conta porque eles, independentemente da sua escola de pensamento, supĂ”em que a taxa de cĂąmbio Ă© volĂĄtil, mas no curto prazo, e, portanto, nĂŁo entra nos cĂĄlculos de investimento que fazem as empresas. Entretanto, se, como afirma o novo desenvolvimentismo, existe nos paĂses em desenvolvimento uma tendĂȘncia Ă sobreapreciação cĂclica e crĂŽnica da taxa de cĂąmbio, entĂŁo as empresas considerarĂŁo a taxa de cĂąmbio em suas decisĂ”es de investimento. Terceiro, existe, finalmente uma relação muito simples, mas geralmente esquecida, entre o dĂ©ficit em conta-corrente de um paĂs e a taxa de cĂąmbio que âequilibraâ esse dĂ©ficit. Quanto maior for o dĂ©ficit em conta-corrente, mais apreciada serĂĄ a sua moeda. Logo, quando o paĂs aceita a ideia de que se desenvolverĂĄ mais rapidamente incorrendo em dĂ©ficits em conta-corrente, ele estarĂĄ apreciando sua moeda. Como essa apreciação Ă© crĂŽnica ou de longo prazo, ela serĂĄ um forte desencorajador do investimento. A taxa de investimento cairĂĄ, e, em consequĂȘncia, aumentarĂĄ o consumo, nĂŁo o investimento. Ou, em outras palavras, haverĂĄ uma alta taxa de substituição da poupança interna pela externa.
Tudo isto Ă© muito claro, e eu conversei muitas vezes com Aldo sobre esta questĂŁo. EstĂĄvamos de acordo. Mas nosso acordo de nada adiantava, jĂĄ que os governantes e os economistas de nossos dois paĂses nĂŁo sabem nem querem saber estas coisas. Eles continuam empenhados em tentar crescer com poupança externa. Isto Ă© verdade no Brasil, isto Ă© verdade na Argentina.
Desde a crise de 2001, porĂ©m, a Argentina passou a ter uma vantagem. Dada a restruturação da dĂvida que o paĂs realizou, ele perdeu o crĂ©dito, e os governos nĂŁo tiveram alternativa senĂŁo manter sua conta-corrente equilibrada. Mas sempre contra vontade. Seja no governo dos Kircheners, seja no atual governo. EstĂŁo sempre querendo recuperar o crĂ©dito para poder voltar a se endividar em moeda estrangeira. Neste momento acredito que, afinal, isto serĂĄ conseguido. O governo e seus economistas dirĂŁo que entrarĂŁo em dĂ©ficit em conta-corrente e se endividarĂŁo para financiar investimentos, mas, na verdade, financiarĂŁo consumo. O que facilitarĂĄ sua reeleição, se o baixo crescimento e afinal a crise cobrarem o seu preço. Em entrevista a PĂĄgina 12 (8.5.16), Gabriel Palma afirmou, preocupado, em relação Ă Argentina: âHay un peligro de irse por la vĂa del endeudamiento y creo que este gobierno va a hacer precisamente eso pues la tentaciĂłn es muy grande, es un esquema insostenible en el mediano plazo a menos que esos recursos se inviertan, lo cual es poco probableâ
Aldo Ferrer nĂŁo tinha dĂșvidas quanto aos malefĂcios dos dĂ©ficits em conta-corrente. No artigo jĂĄ citado, de 2010, com o tĂtulo, âNuevo desarrollismoâ, ele escreveu: âEn efecto, Argentina saliĂł de su crisis rechazando el canon ortodoxo y reasumiendo el comando de su polĂtica econĂłmica sin pedirle nada a nadie, ni dinero ni consejos. Es decir, demostrĂł que no son recursos los que escasean sino la buena calidad de las polĂticas pĂșblicasâ.
Era impressionante o respeito e a admiração que Aldo Ferrer despertava em seus colegas economistas na Argentina e tambĂ©m no Brasil. Aqui, em 2013, eu estive presente na cerimĂŽnia na qual ele recebeu o tĂtulo de âeconomista estrangeiro do anoâ que lhe foi outorgado pelo Conselho Nacional de Economistas. Na Argentina, quantas vezes eu participei de painĂ©is de debates econĂŽmicos nas quais a presença dele na mesa era quase que obrigatĂłria.
Em 2014 ele foi nomeado embaixador da Argentina na França, e estive com ele algumas vezes, na embaixada. Ele estava sempre sorridente, e me recebia com alegria, mas ele nĂŁo estava no seu papel preferido âo de economista do desenvolvimentoâ. Estava lĂĄ como um servidor pĂșblico nĂŁo-profissional que, quando chamado, tem a obrigação de atender Ă demanda que lhe Ă© feita. NĂŁo foi a primeira vez que fez isto. Ocupou vĂĄrios cargos, inclusive o de Ministro da Economia, divertia-se com o trabalho que realizava, mas era, essencialmente, um economista intelectual pĂșblico, nĂŁo um burocrata, nem um polĂtico, que ocupava cargos em vista do interesse pĂșblico.
Vi Aldo pela Ășltima vez em Buenos Aires, em maio de 2015. Ele chegou ao restaurante com seu tradicional sorriso, mas agora havia nesse sorriso um elemento sardĂŽnico. Com a idade ele se tornara um sĂĄbio, que olhava os seus conterrĂąneos com um misto de amor e de ironia. Tantas lutas, tantos ideais, em tantas pessoas, e, no entanto, o progresso nĂŁo apenas econĂŽmico, mas tambĂ©m social, polĂtico e no plano da proteção do meio-ambiente revelava-se muito lento, e, em determinados momentos, experimentava retrocesso. Talvez seja esse o destino dos intelectuais pĂșblicos: contrastar suas grandes esperanças com a dura realidade e nĂŁo desanimar, muito menos desesperar, mas compreender. AlĂ©m de um notĂĄvel economista, Aldo Ferrer foi um grande homem pĂșblico argentino.
ArtĂculos de este nĂșmero
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